Thursday, September 01, 2005

Como é possível?

Na generosidade dos seus 83 202 caracteres (espaços e destaques incluídos), o Programa de Candidatura de António Carmona Rodrigues à presidência da Câmara Municipal de Lisboa é um documento revelador. É-o tanto pela desmedida ambição das suas propostas, algumas das quais francamente pela forma como evidencia o posicionamento estratégico do candidato, em relação à maioria da qual faz parte. No que se refere ao primeiro aspecto, não será por isso que desmerece: a ambição de fazer, mesmo quando de concretização problemática, não é em si uma má coisa.
Já quanto ao segundo, o caso é mais grave e coloca sérias questões quanto à idoneidade do candidato.Ali se lê, por exemplo: “Como é possível haver património municipal degradado, e simultaneamente falta de residências universitárias, quando existem instituições interessadas na abertura e gestão de novas residências universitárias?“Como é possível haver bairros de alvenaria de génese ilegal com péssimas condições de habitabilidade e empresas interessadas na sua reabilitação por permuta com uma melhor utilização e ordenamento do espaço?“Como é possível existir estacionamento ilegal se existem várias entidades como a Divisão de Trânsito da PSP de Lisboa, a Polícia Municipal e a EMEL, com essa função?“Como é possível que se apoiem estratégias de reabilitação urbana e se impeça a demolição de prédios em ruína (não classificados) até que o proprietário tenha condições efectivas de submeter à Câmara um projecto de licenciamento?
“Como é possível que a CML padeça de falta de fiscais municipais e ao mesmo tempo haja pessoal administrativo subaproveitado que pode ser reconvertido para essas funções?”Algumas destas perguntas retóricas são dificilmente compreensíveis, até quanto ao efeito que se visa atingir (aquela dos “bairros de alvenaria”, por exemplo (; mas não é isso que mais importa. O que aqui interessa é o tom de inconformada indignação com que o candidato se dirige aos poderes vigentes, parecendo que está a dirigir-se aos eleitores, com os quais insiste em manter diálogo directo e personalizado. Carmona faz discurso de oposição ao que está e ao que não se fez: é a oposição si próprio. Porque à pergunta “como é possível?”, bem se pode dar desde logo uma resposta: é possível, porque a maioria municipal de que Carmona é vice-presidente, e à qual até presidiu durante alguns meses, pouco ou nada fez para os resolver, nos seus quase quatro anos de mandato.
O Programa de Candidatura de Carmona Rodrigues é um espantoso exercício de demarcação política e pessoal da equipa a que ainda pertence. E, para que não restem dúvidas a quem lê, aí vai a afirmação programática: “Este projecto (conta) com a minha liderança, executado à minha maneira e à de uma nova equipa que eu próprio escolhi, protagonizado com atenção e com tempo.”Esta da “nova equipa que eu próprio escolhi” é uma frase assassina. Tendo sido escolhido para a equipa actual (e com que proeminência), Carmona insinua que os critérios da escolha não foram os mais adequados; e por isso, reivindica para si o privilégio de escolher a sua equipa e de “protagonizar” o projecto “com atenção e com tempo” – coisa que, aparentemente, não existe na actual equipa, da qual, no entanto, continua a fazer parte. A questão faz bumerangue: se a escolha não foi a mais adequada, então também ele está em causa.
Por que razão havíamos de acreditar que, numa equipa politicamente deficitária, só ele tenha sido uma boa escolha?As responsabilidades de Carmona Rodrigues em algumas das mais controversas opções do actual executivo municipal vão sendo conhecidas, à medida que nos aproximamos das eleições. Já aqui referi, em crónica anterior, como dificilmente se compreenderia a sua desresponsabilização em casos como o do Parque Mayer ou do túnel do Marquês. Para que não restem dúvidas, o seu apadrinhamento surge agora explicitado, com definitiva veemência:“Terminarei o Parque Mayer. Porque acredito que Lisboa precisa daquele equipamento.“Terminarei o Túnel do Marquês. Porque sei que vai melhorar o tráfego da cidade.”O candidato não argumenta, não justifica, não propõe. Como o outro, não se engana e raramente tem dúvidas. Ele “acredita”, ele “sabe”, ele põe e dispõe.
Todo o Programa está escrito na primeira pessoa do singular. Porque Carmona Rodrigues não é um candidato de um grupo de pessoas que partilham ideias e alimentam uma esperança colectiva: ele é o candidato de si próprio, o que nunca esteve nas decisões mais desastrosas, o que nem sequer quer saber das razões dos que se lhe opuseram.
A sua candidatura não é uma emanação de uma equipa de cidadãos que quer resolver os problemas da cidade: é a fezada de um político que pede aos cidadãos um cheque em branco. É este homem que quer ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa.Como é possível?
António Mega Ferreira in Visão - 1 Setembro 2005

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